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Avenida Rio Branco, Rio de Janeiro, 17 de junho de 2013 (foto Agência EFE)

Perdido na Multidão: notas sobre o 17 de junho
por João Marcelo Maia, Sociólogo e professor do CPDOC/ FGV, pelo Facebook

No dia 17 de junho de 2013, eu me encontrava no IFCS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da UFRJ) desde as 13:30. O motivo profissional era participar de uma banca de mestrado entre 14 e 16 horas. Porém, sabendo da boa localização do Instituto, que fica no coração do Centro do Rio, pretendia também sair da banca e acompanhar as manifestações que iriam ocorrer naquele final de tarde. Meus motivos pessoais eram dois: a) a curiosidade de ver pessoalmente os participantes, suas palavras de ordem e seu repertório de ação coletiva; b) o desejo de me juntar aos que protestavam contra a repressão policial que se abatera sobre manifestações similares nos últimos dias. 
Ao sair da banca pouco depois das 16 horas, o que vi no pátio do IFCS? Havia vários jovens, entre 18 e 25 anos, pintando faixas e cartazes, aparentemente sem uma coordenação central. Vi garotos e garotas que visivelmente tinha alguma experiência de militância política, pois vestiam camisas da campanha de Marcelo Freixo à prefeitura do Rio e pintavam dizeres que ecoavam uma leitura mais “à esquerda” do protesto. Uma grande faixa amarela dizia “Não é por centavos, mas por direitos”. Ao mesmo tempo, via outros jovens com cartazes próprios, que traduziam um sentimento difuso de indignação, e não uma pauta política mais específica. Esses diziam coisas como “Verás que um filho teu não foge à luta”, “#Vem pra rua” etc. 
Do lado de fora do IFCS, com o Largo de São Francisco já bem cheio, havia uma caixa de som com um jovem falando ao microfone. Era um militante político com alguma experiência, pois suas falas e músicas traduziam a visão dos jovens com alguma socialização de esquerda. Na praça, eu via muitos cartazes particulares e algumas bandeiras de partidos, basicamente do PSOL. Encontrei também militantes mais velhos – digo, da minha geração -, boa parte deles vinculada ao PSOL ou simpatizante. 
Quando a manifestação saiu do IFCS em direção à Candelária, percebia que os temas principais das músicas eram a luta contra o aumento da passagem e a crítica aos gastos com a Copa do Mundo. O governador Sérgio Cabral também era alvo preferencial da garotada, provavelmente por conta da repressão policial conduzida pela PM em eventos anteriores. Havia muitas bandeiras do Brasil, gente com cara pintada de verde e amarelo, e juro que ouvi mais de uma vez o chatíssimo coro de “Eu sou brasileiro/ com muito orgulho/ com muito amor”. Na frente da manifestação, muitas bandeiras, em especial do PSTU e do PCB. Em determinado momento, quando já estava na Rio Branco, ouvi um coro de alguns manifestantes contra a presença dessas bandeiras na manifestação. Mas, até onde acompanhei, as bandeiras continuaram. 
Havia diversos grupos políticos organizados além dos partidos à esquerda do PT. Vi gente do movimento LGBT e uma bandeira do arco-íris. Vi também gente ligada à luta de médicos e de enfermeiros contra a desativação do IASERJ. Por outro lado, vi cartazes inimagináveis numa manifestação classicamente de “esquerda”, como um que dizia “Por uma política monetária séria!!”
A manifestação era difusa, com diferentes grupos ao longo dela, sem um carro de som que coordenasse a massa ou discursos de lideranças que reiterassem uma agenda comum. Os momentos de maior vibração dos manifestantes ocorreram quando estes percebiam que papel picado era jogado do alto dos prédios, ou quando o povo que trabalhava nos escritórios da Rio Branco piscava as luzes em sinal de apoio. Nesses momentos, parecia-me que o ato de estar na rua de forma coletiva era mais importante do que a própria expressão de uma agenda política mais precisa. 
Ao longo do trajeto, encontrei alguns colegas de geração e outros mais velhos, a maioria professores universitários. Vi também algumas figuras mais carimbadas da política de esquerda do Rio. Todos, em geral, pareciam mais curiosos do que propriamente entusiastas participantes. Afinal, por que eu e outros parecíamos perdidos na multidão?
Em primeiro lugar, havia um evidente viés geracional. Era uma manifestação de jovens entre 15 e 25 anos, em sua esmagadora maioria. Não que só houvesse esses jovens, mas eles pareciam dar a cara da manifestação. Além disso, eu não conseguia localizar claramente os grupos e movimentos sociais aos quais me acostumara (“ali está o povo do MST”; “lá estão os secundaristas do Pedro II”; “ali ficam os troskos do PSTU” etc), e nem mesmo as tradicionais formas de expressividade política associada a esses grupos. Eles estavam lá, mas a hegemonia não lhes pertencia. Finalmente, a mensagem política não era muito clara. Eu percebia e me identificava com os jovens que inseriam a luta contra o aumento da passagem num quadro mais geral de mercantilização da vida no Rio e o consequente desrespeito aos direitos dos setores populares na cidade (remoções, especulação imobiliária, violência policial etc). Entretanto, não era essa agenda dominante, se é que havia uma agenda dominante. 
Ok, mas o que se pode analisar de tudo isso? Mesmo achando que ninguém sabe exatamente o que está ocorrendo, eu chutaria o seguinte:
1. O movimento surgiu das lutas do Movimento Passe Livre (MPL), que foi responsável pelas únicas ações estudantis de massa nos últimos anos em capitais brasileiras. Entretanto, ele obviamente extrapolou o MPL e tornou-se um movimento de diversas multidões. Um dos fatores decisivos foi a violenta repressão policial, que juntou as pessoas numa vontade de afirmar o protesto democrático. 
2. O movimento surgiu apesar da grande imprensa. Não houve simpatia inicial nenhuma por parte de Veja, Folha, Globo e Estadão. Ao contrário, os jornais paulistas, em especial, buscaram criminalizar os protestos e desqualificar seus participantes. Agora, a cobertura virou, muito por conta da brutalidade policial e da evidência de que a hegemonia não é da esquerda organizada. 
3. O movimento é basicamente juvenil em sua base e em sua forma. A manifestação se valeu da convocação por redes, o que lhe permitiu atuar sem a mediação de instâncias clássicas (fóruns presenciais, negociação entre lideranças, articulações intensas de bastidores e negociação com os poderes instituídos). Além disso, há uma rejeição à hierarquia e aos mecanismos de organização de massas, valores classicamente juvenis, em especial, dessa juventude nascida na década de 1990. 
4. O movimento não é propriamente “de esquerda” no sentido partidário do termo. O que o caracteriza é um sentido de impotência diante da política e do Estado que se traduziu numa vontade de potência, isto é: o barato era estar na rua de forma coletiva contra um ambiente institucional que é percebido como distante e/ou repressor. Era por isso que a interação com as ruas, os cânticos e as formas de se estar junto pareciam valer mais que a defesa de alguma agenda específica.
Beleza, mas o que vai acontecer? A verdade é que ninguém sabe. Por um lado, a leitura dos jornais de hoje já me convenceu que a grande imprensa vai tentar, de todo jeito, “enquadrar” cognitivamente essa vontade de potência na sua pauta, isto é: as manifestações estão sendo lidas como uma espécie de “Cansei!” com maior base social, espécie de brado cívico genérico. Por outro lado, há uma tarefa gigantesca para todos aqueles que acreditam na luta por direitos, por justiça social e por democracia. Trata-se da necessidade de dialogar com essas multidões e, por meio deste diálogo, potencializar um sentido político possível, que é o de fazer a crítica das contradições que assolam o projeto ora dominante no Brasil: desenvolvimentismo tecnocrático, desrespeito aos direitos de indígenas e outras minorias, desprezo pela agenda dos direitos civis e mercantilização da vida nas grandes metrópoles. Está claro que não se trata de “hegemonizar” o movimento, pois sua própria forma parece impedir qualquer tradução política via um aparato institucional ou partidário. A única estratégia possível é o diálogo, entendido como um procedimento aberto de aprendizado mútuo. Perder-se na multidão talvez seja um primeiro passo.

Bob Fernandes, pelo Facebook - 17 de junho de 2013

Nunca soube fazer essas contas. Que algum engenheiro por aqui nos ajude. Caminhei uns 40 minutos pela Faria Lima, São Paulo, na contramão da passeata. Desde as proximidades da Juscelino Kubistcheck até a Rebouças. Todas as pistas, de ida e volta, lotadas por manifestantes. À altura da Juscelino a passeata se dividiu em pelo menos três grupos: um subiu para a Paulista, outro rumou para a Marginal Pinheiros e um terceiro seguiu para a ponte estaiada. Dizem, não sei se fato, que a PM calcula a multidão em 70 mil pessoas. Não sei se digo que são piores de conta do que eu ou que, digamos, erram.
Grosseiramente. Setenta mil pessoas cabem num estádio como o de Brasília, aquele de R$ 1,2 bilhão em que estive no sábado. O que está, esteve, está nas ruas é muito mais do que isso.  Estou razoavelmente acostumado a cobrir manifestações, e não apenas no Brasil. Dos comícios das Diretas e da campanha de Tancredo à posse de Obama e comícios de chavistas e antichavistas em Caracas. Há muito tempo não vejo tanta gente na rua. E tão numa boa.  Até às 8 da noite, e desde as 4 da tarde, não vi um ato de vandalismo. O máximo, num relógio na pracinha em frente à entrada da Rua Amaury, cruzamento com a Faria Lima, foram vaias para um jovem que pichou a escultura que sustenta o relógio. Foi vaiado e ouviu o coro "sem vandalismo!" Quando voltei, a pichação “3,20 não" tinha sido coberta por uma bandeira do Brasil.
Há pouco, dois jovens subiram no teto de um ônibus quase em frente ao shopping Iguatemi. Sob vaias se viram obrigados a descer do ônibus.  Desde o início, e por todo o trajeto, palavras de ordem variadas. Uma delas entoada a toda momento: “Que coincidência, sem polícia não teve violência”. Outra, “Sem vandalismo!”.  Reação também as faixas e bandeiras de partidos como PSOL e PSTU. Por todo o trajeto, e a ainda na concentração inicial no Largo da Batata, coros cobravam: “Sem partido, sem partido, sem partido”. Muitos cartazes contra “Alckmin e a violência”, faixas cobrando “Decide, Haddad”, e cartazes escritos em cartolinas exigindo educação e relacionando a Copa e Dilma. Mas coros que soassem a partidarismo eram logo abafados pelo “Vem pra rua, vem...”
Essa reação ampla à partidarização do movimento, não sei se por ação orquestrada do Movimento Passe Livre, que para isso teria que ter espalhado seus jograis por todo o trajeto, ou se reação espontânea, ou ainda se por rejeição natural às tentativas de controle político-partidário. Nos canais mainstream de reverberação virão, inevitáveis, as tentativas de controlar, de dirigir as manifestações em favor de A ou contra B. Nas redes, veremos o mesmo. Ninguém é ingênuo de supor que isso tudo, mais tempo, menos tempo, não desaguará em canais da política partidária. A se ver quais os destinos do que vem sendo manifestados na Faria Lima, Paulista, Rebouças, Marginal do Rio Pinheiros, Cinelândia, Porto Alegre, Fortaleza, Maceió, Belém, Vitória, Pampulha, Brasília, Salvador...
Mas hoje, ao menos em São Paulo, as ruas resistiram às tentativas de controle político-partidário. Conviveram, mas com vaias e coros, estão reagindo. Inclusive na Paulista, que nesse momento recebe mais e mais gente.


Texto de Lucas Sendacz Acher (3º ano do colegial, e tem 17 anos) 
Do Facebook de Bob Fernandes, 16/06/2013

A gente anda triste. São Paulo mostra isso. O Brasil mostra isso. As expressões do pedestre evidenciam um misto de mal estar, cansaço e sonhos cada dia mais iludidos por veículos de informação que ignoram o bem comum. Não se pode culpar alguem por sentir isso, porque do jeito que as coisas andam ninguem tem tempo pra nada. Na era da rapidez a rotina é persistente, e as semanas se confundem umas com as outras. As ideias se rompem pela falta de memória, todo dia é igual ao outro, com excessão da angústia, que aumenta exponencialmente. As conversas de ônibus são sobre os problemas do transporte e não existe mais tempo pra conhecer nova gente da nossa cidade, lugar que deveria cediar relações de empatia. De que adianta uma copa do mundo se nem empatia temos? Na verdade o que temos é medo. Medo do outro na rua, no trabalho e em casa. Todo dia tem alguém que perde a vontade de tudo.

As últimas duas semanas tem significado muito para o nosso país. Tem representado a grande quebra da rotina, que se fincava cada dia no nosso chão mal ladrilhado. Era uma rotina que induzia a conformidade e a falta de motivação. Os protestos ocorridos nesse mês de junho de 2013 mostram que é através dessas quebras que se combate o cansaço e o vazio da vida urbana, causados pelo mal recompensamento do nosso esforço, pelos próprios administradores da nossa cidade. Que tipo de ser gosta de fazer mal a ele mesmo? Isso é um absurdo. Que tipo de governo gosta de ignorar o que o povo tem a dizer (e não só isso, mas tentar calar a boca de todo mundo através da força física) ? As quatro passeatas contra o aumento da tarifa significam muito mais do que um bando de adolescentes revoltosos a fim de botar para fora os hormônios. A quebra é necessária sempre que a gente sente essa sujeira em cima da gente. A quebra origina o novo, e tudo que for novo e diferente dessa realidade miserável deve ser colocado em pauta.

A rua é o melhor local para rupturas de padrões. É nela que inteferimos realmente na vida dos que não vêem ou não querem ver o sorriso virado pra baixo estampado na cara daqueles que transitam pela rua sem tempo de pensar, pois o trabalho demanda, e muito. Aqueles que chegam em casa e assistem na sua humilde televisão um programa pra descontrair a seriedade da rotina. Mas e se até mesmo muitos desses programas enganam? Aí é que é a gente começa a perceber que o problema é maior que esses 20 centavos. E tudo isso é só uma parcela minima dos nossos reais problemas. Esses protestos estão funcionando como verdadeiros estopins positivos, pois a nova cultura de se manifestar ainda está nascendo. E já era hora.